O Estado e o seu papel na pandemia de coronavírus

As Relações Internacionais nasceram da necessidade de entender a natureza do Estado e o Sistema Estatal, se sofisticou e se diversificou como campo de estudos e espaço profissional. O primeiro Estado moderno é Portugal, que em 1267 fixa os seus limites territoriais e conduz a centralização do poder na figura do rei. Esse processo também se consolida em inúmeras partes da Europa, criando grupos sociais próximos em termos linguísticos, culturais e étnicos estabelecidos em um território contiguo, tendo a centralidade e exclusividade do poder na figura do soberano. A justificativa para a autoridade de um poder central e soberano varia, mas será em muitos casos de origem divina ou do povo.

Os Estados, que substituíram e consolidaram a organização da vida social, que antes era dispersa entre cavaleiros, nobres, clero, artesãos e senhores de terras, agora constitui uma única estrutura política, economia e social. Todas pessoas se tornam cidadãs de um Estado, a começar pelos comerciantes, membros da Igreja Católica e donos de terras, com muita luta grupos minoritários também conquistam seus direitos de pertencimento. Na sua origem, todos os habitantes deveriam falar a mesma língua, seguir a mesma religião e cultura. Os 11 Tratados Vestfália, de 1648, que visaram inicialmente por fim aos conflitos entre os Estados nascentes na Europa, lançaram as bases para o estabelecimento de padrões de conduta entre os países, para a diplomacia e, especialmente, para o reconhecimento e coexistência das Soberanias. Entretanto, apenas países europeus, e ainda assim nem todos, faziam parte desse Sistema Estatal.

As nações e outras organizações sociais, em especial impérios seculares, clãs, tribos e comunidades nômades, que não europeias, mesmo com estruturas sofisticadas, foram tidas como passíveis de dominação, subjugados e controlados por potências europeias. O tratado de Tordesilhas, que dividiu o mundo entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela, de 1494, é um dos últimos resquícios da autoridade da Igreja, na figura do Papa, de dispor sobre o direito das terras e dos povos. A própria colonização portuguesa, que ao contrário do ensinado nas escolas, não descobre uma nova terra, pois já havia moradores, pessoas com suas organizações sociais. Se consolida, entretanto, o modelo de dominação que levaria Estados europeus a dominarem o mundo, a destruir e subordinar todas as formas de organização sociais existentes. Tudo que era externo ao contexto europeu era visto como precário e exótico, nasce um preconceito que vai perdurar, justificar e naturalizar muitas atrocidades.

A China, dentre todos as sociedades, foi uma das que mais resistiu ao domínio e imposição do sistema estatal europeu. Portugal abre um entreposto comercial para lidar com as autoridades chinesas e conduzir as trocas comerciais nas margens do Rio das Pérolas, que seria conhecido como Macau, de forma gradual desde 1557. Se trata de uma ótima região para atracar navios, tanto que na outra margem nasce Hong Kong sobre o domínio inglês. São estes, sucedendo os portugueses e holandeses, os maiores interessados no domínio sobre os chineses. O Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda (hoje o Reino Unido) leva a cabo diversas incursões para subjugar o Império Qing (China), sendo as Guerras do Ópio, de 1839-1842 e 1856-1860 a principal marca dessa estratégia, e resultando no controle de Hong Kong. Nesse mesmo período, em 1858, os ingleses consolidam também o domínio sobre o subcontinente indiano, onde ficariam até 1947.

Para não nos estendermos nesse aspecto da evolução do sistema estatal: o mundo foi colonizado por potências europeias que impuseram suas formas de organização. Todos, raríssimas exceções, foram transformados, os povos nômades tiveram que se fixar, outros conduziram a unificação através de guerras e disputas políticas pelo estabelecimento da autoridade soberana, regimentando as bases para se tornarem Estados. Essa instituição é, por natureza, uma organização social que não está subjugada, que conta com um território, uma população e a com centralidade da autoridade e uso exclusivo da força, o que causa até os dias de hoje milhares de conflitos. Por mais que existam milhares de grupos sociais, há apenas duas centenas de Estados soberanos. Trata-se de uma entidade, copiosa e recente, que se tornou o fórum por excelência da organização da vida do mundo nos últimos dois séculos.

Estamos presos a grilhões, ou seja, não somos cidadão do mundo, mas de um Estado. Jean Jacques Rousseau (1712-1778), um dos proeminentes no estudo da natureza do Estado, via no contrato social a saída para garantir a liberdade, o bem-estar e a segurança, elementos básicos dessa entidade. O Estado é, quando visto pela ótima do sistema estatal, uma unidade política independente, mas quando partimos da análise do indivíduo, um cidadão, trata-se de um governo central constituído para garantir o bem-estar, a justiça, a liberdade e a ordem, isso inclui prover saúde, educação, emprego e moradia. Momentos da vida social onde esses fatores são afetados, como nas guerras, desastres naturais e pandemias, como a causada pelo Coronavírus, mostram que o mundo hoje é dividido por soberanias e fronteiras. Basta nos perguntamos: a qual organização social recorremos nesse momento? Como vimos, todas as demais formam subjugadas e substituídas pelo modelo qual vivemos hoje.

O Estado é, nesse momento da história, responsável pela vida em sociedade, pelo poder (uso da violência), sucedeu outros sistemas e formas de organização, e eventualmente dará lugar a outra estrutura. Nunca tivemos uma única estrutura social de alcance global capaz de pôr fim aos conflitos, de garantir justiça, liberdade, bem-estar e ordem para toda a humanidade. Há, no entanto, um conjunto de Estados, cada qual responsável pelos seus cidadãos, mas com capacidades distintas. Alguns, por suas debilidades, são tidos como “quase-Estados” ou “Estados falidos”. Ainda há pessoas que são perseguidas ou expulsas de seus países, tendo que se estabelecer, quase sempre de forma precária em outros, não tendo como procurar o seu Estado para ser amparado.

Einstein, em 1932, por uma proposição da Liga das Nações, escreve uma carta para Freud para procurar um entendimento sobre a natureza do Estado, “existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra?”. Para o cientista que criou a teoria da relatividade geral, “como pessoa isenta de preconceitos nacionalistas”, tema que trataremos em breve, a criação de uma entidade supranacional, “um organismo legislativo e jurídico” seria uma alternativa para por fim aos conflitos estatais. O Estado é questionado, pois conserva um preconceito antigo, remontando ao surgimento do conceito de cidadania nas Cidades da Grécia Antiga, de ver o outro como “bárbaro”, um tema que marca a existência da humanidade de forma mais sofisticada e sutil nos dias de hoje, evidenciado em momentos de crise como a pandemia de Coronavírus.

A nacionalidade é requisitada durante a COVID-19. Nesse momento o país é tido como “Pátria” ou “Mátria”, e as pessoas vão procurar suas origens, quais os aceitam cidadãos, para ter suporte para regressarem e se ampararem. O movimento de repatriamento mostra que o Estado assumiu um papel de garantidor da segurança dos seus cidadãos até mesmo quando fora dos domínios da sua soberania, volta o senso de pertencimento. O turismo e a mobilidade internacional são algumas das maiores invenções da sociedade moderna, amparados por inúmeros acordos entre os Estados, como a concessão de vistos e permissões de trânsito, mas não nos tornamos cidadãos do mundo, por mais que convenções e acordos estabeleçam garantias.

O Estado é soberano e capaz de fechar suas fronteiras, sendo uma estratégia adotada para conter a transmissão do Coronavírus. Aqueles que se encontravam fora de suas pátrias se viram impedidos de sair, tendo que procurar apoio nos seus Estados de origem, o emissor dos seus passaportes, pois não são integrados ao local onde estavam. Da mesma forma, essa capacidade do Estado alterar as condições de vida, deve ser direcionada para atender e fazer os sacrifícios que se fizerem necessários para garantir a segurança nesse momento contra dois inimigos invisíveis: o preconceito e o vírus.

A nacionalidade em si não é um problema, mas seu uso indevido e oportunista pode causar sérios danos. O que sucedeu durante a Segunda Guerra Mundial, com a perseguição aos judeus e outras minorias pelo regime nazista, por exemplo, mostra que nunca devemos partir para uma justificativa rasa de estigmatizar o estrangeiro ou quem tem um cultura diferente como culpado por qualquer questão. A cultura, a língua, as tradições, a orientação política, as características físicas e étnicas não são e nunca serão justificativas para um evento que poderia se dar em qualquer parte do mundo e com qualquer grupo de pessoas.

A origem do Estado, como tratado anteriormente, se dá pela caracterização dos seus integrantes, os nacionais (de mesmo grupo étnico, linguístico e cultural) e da cidadania (aqueles que tinham direito a cidade, e a vida política), e pela caracterização do estrangeiro (quem é estranho, de fora). Para o Romanos, todos que não faziam parte do Império, eram bárbaros, aqueles não eram civilizados. Essas caracterizações justificavam, no seu tempo, a existência de suas estruturas sociais, era a forma de criar medo e estigmatizar quem não fosse parte dessas organizações. O inimigo sempre vinha de fora. Estas práticas são repreendidas hodiernamente, traduzidas nas revoltas contra os colonizadores, na luta pela preservação de cultura e das tradições, entre os profissionais de Relações Internacionais com os estudos e teorizações anticolonialistas, com o orientalismo e o feminismo e pela teoria da dependência, por exemplo.

A sociedade moderna, em todos os cantos do mundo, faz parte de um Estado. Essa forma de organizar a vida, que se desenvolveu junto com a Modernidade, independente da forma de governo adotada, se tornou responsável pelas garantias já mencionadas. Hoje não há bárbaros no campo internacional, mas outros Estados organizados. Pode-se questionar a capacidade de um país de responder aos desafios apresentados ao seu povo, como o caso do Coronavírus, mas não é aceitável, e nunca mais será, qualquer comentário racista e qualquer estigmatização (que em sua origem significava marcar com ferro em brasa os criminosos).

Qualquer organização social, seja um Estado como conhecemos hoje, tem suas vantagens e desvantagens, tendo debilidades. A função da sociedade internacional nesse momento, e isso inclui qualquer pessoa, é de cobrar que os Estados cooperem, formem grupos de trabalho para encontrar saídas comuns para o enfrentamento do Coronavírus e que diminua todas as suas consequências negativas para a sociedade. Culpar quem não é responsável, pelo simples fato de fazer parte de uma cultura, por falar outro idioma, por ter um culinária diferente, ou por qualquer outro aspecto relacionado a sua nacionalidade ou origem, é usar de um subterfúgio inadmissível.

É papel do Estado, e isso incluí todos que estão no governo, seja um vereador ou um senador, assim como de toda a sociedade, procurar conhecer e respeitar as diferenças entre os povos. O Brasil, por sua origem e história como colônia, império e república, por sua formação cultural, étnica e religiosa, deve assumir um papel de protagonista contra quaisquer preconceitos e comentários desmedidos em um momento tão sensível quanto o que estamos passando.

Os Estados contam com capacidades limitadas para atuar em questões que transpassam as fronteiras nacionais, mesmo a busca pela autonomia e autossuficiência, em um mundo cada vez mais interdependente, nunca é plena. Por isso, é fundamental a consolidação de fóruns e canais de comunicação e cooperação entre os países, em especial em momentos de dificuldades como o que estamos vivendo. Os países com condições de auxiliar, assim devem fazer, pois existe a reciprocidade e a coexistência. O nível de desenvolvimento econômico, científico, educacional, médico, industrial e social dos países variam, tendo que prevalecer nesse momento a solidariedade entre os povos, em especial para auxiliar os países em dificuldades.

A Rússia enviou equipamentos para os Estados Unidos, a Alemanha disponibilizou leitos de tratamento intensivo aos italianos em com a COVID-19 e Cuba enviou epidemiologistas e médicos para a Itália para auxiliar nos hospitais. A China fez diversas conferências, com o Brasil inclusive, para tratar de medidas e práticas adotadas pelo país no esforço de conter e eliminar o vírus. Para alguns, pode soar como uma oportunidade de mostrar superioridade, mas é uma questão que vai além: trata-se de se sensibilizar e entender, seja lá qual for sua cultura, sua religião ou ideologia política, que a vida deve ser amparada.

O Estado tem como missão proteger seus cidadãos, mas pode se transformar em uma ameaça para outros. Essa organização social, ao mesmo passo que é responsável pela garantia da ordem e da segurança, representa uma perigo para todos que não façam parte dele, por isso a integração e amizade internacional nunca devem abandonadas. É função da Pátria defender os interesses nacionais, o que pode levar a duas saídas: cooperação ou conflito. As recentes notícias das autoridades confiscando equipamentos destinados a outros países, inclusive entre aliados históricos, como EUA e Canadá, Brasil e Argentina, se justifica pela defesa dos interesses nacionais, mas afeta as relações diplomáticas e todos os esforços de cooperação internacional, devendo ser repudiado pelos demais Estados e abertos novos canais de comunicação.

Em um momento de tamanha comoção, onde dezenas de milhares de pessoas morreram e uma parcela significativa está ameaçada, mesmo que exista ainda outras questões sociais para serem tratadas e superadas, é uma condição nova e que, se não enfrentada da devida forma, pode evoluir para uma catástrofe ainda maior. A cooperação e a diplomacia devem ser preservadas junto com todo o esforço para respeitar as diferenças, dirimir quaisquer dúvidas que possam levar a condutas preconceituosas, como já vimos inclusive do Presidente Donald Trump. Os governantes devem assumir o papel de liderança de suas comunidades, para tanto é preciso reconhecer e pedir desculpas por comentários preconceituosos, que afetam e não representam o pensamento da sociedade.

O momento é de exigir dos Estados transparência, atuação com respeito e em prol dos Direitos Humanos, amparo aos grupos da sociedade mais necessitados e cooperação para diminuir o sofrimento, o qual não encontra fronteiras ou nacionalidade. O governo estabelecido é a instituição responsável por oferecer melhores condições de vida para a sociedade, não obstante a existência de outros entidades, mas é a única com capacidade de congregar e exercer a ordem e a justiça nesse momento.

Está evidente que o internacional está cada vez mais presente em nossas vidas e que as fronteiras são construções sociais, muito mais do que barreiras físicas. A importância de entender e dissolver qualquer dúvida ou desconhecimento sobre quem mora em outro país se torna evidente e crucial. Assim como o médico é requisitado para cuidar dos enfermos e para criar medidas preventivas; ou o contador é solicitado a estudar medidas contábeis para readequar a empresa, é dever do profissional de Relações Internacionais e de todos que se dedicam ao campo, trazer o entendimento, dirimir quaisquer imbróglios e repudiar qualquer ação oportunista e que atente contra os Direitos Humanos.

Em momentos de normalidade no sistema estatal, a sociedade não se dá conta, passa desapercebido, todo o esforço e trabalho desenvolvido por inúmeros profissionais para que o preconceito não tenha espaço e para que exista o respeito mútuo. É preciso consolidar canais de comunicação e de interação que levem análises e opiniões qualificadas para a sociedade. É dever de todos colaborar para sairmos da crise e demonstrar compromisso com o desenvolvimento da humanidade em todos os seus aspectos.

Essa análise se concentrou apenas em um único ator das Relações Internacionais, mas há outros, tais como: empresas transnacionais, Organizações Internacionais, ONGs e, inclusive, o próprio indivíduo. Os governos precisam cooperar para a superação da pandemia, se unir aos demais atores, abrindo espaço para uma sociedade mais justa e livre de preconceitos, para que os grilhões que nos prendem ao Estado se tornem laços de cooperação e de busca por uma vida melhor.

REVISTA RELAÇÕES EXTERIORES. Análises – Artigos. Disponível em: https://relacoesexteriores.com.br/o-estado-e-o-seu-papel-na-pandemia-de-coronavirus/. Acesso em: 9 mai. 2020.

 

Analista de Relações Internacionais, organizador do Congresso de Relações Internacionais e editor da Revista Relações Exteriores. Professor, Palestrante e Empreendedor.

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