A perspectiva de comunidades refugiadas na pandemia do COVID-19

Durante todo o processo de análise da situação de crise médico-sanitária mundial frente a atual pandemia do COVID-19, a que esse trabalho se dedica, será adotada a perspectiva do indivíduo que se desloca, denominado de migrante internacional. A utilização desse conceito pretende diluir em um só parecer as ideias de imigrante e emigrante – visões referentes a perspectiva estatal dos indivíduos nos fluxos migratórios – admitindo assim, uma perspectiva mais humanizada das relações migrantes-comunidades anfitriãs, fundadas pelas mais diversas razões.

As dificuldades tradicionais desses indivíduos em se adaptar a uma nova realidade, tendo que transpor fronteiras – sejam elas concretas ou não –, físicas, culturais ou mesmo linguísticas, tornam-se ainda mais evidentes e complexas em situações de crises internacionais. Dentro desse grupo abrangente intitulado de migrantes, há os refugiados, que se encontram em uma situação de dupla vulnerabilidade nesses cenários, quando consideramos os conflitos armados que continuam perturbando a ordem pública e ameaçando a vida humana em vários países ao redor do mundo, impossibilitando-os de retornar aos seus lares.

Ao contrário daqueles que migram em busca de melhores condições de trabalho, para se reunir com amigos e familiares ou para entrar em contato com uma nova cultura, os solicitantes de refúgio cruzam fronteiras nacionais por enfrentarem situações perigosas e intoleráveis em seus países de origem, buscando a garantia de seus direitos fundamentais. (OIM, 2020)

A percepção dessa situação específica exige salvaguardas adicionais, isto é, a demanda de uma proteção internacional, visto que seus governos nacionais não possuem a capacidade de proteger ou garantir os direitos humanos básicos de seus cidadãos, levando esses indivíduos a serem reconhecidos como refugiados e passando a receber assistência dos países, da ACNUR e diversas outras organizações da sociedade civil (ACNUR, 2020). De acordo com o artigo 1º da Convenção de 1951, emendado pelo Protocolo de 1967 e relativo ao Estatuto dos Refugiados, o refugiado é determinado como sendo:

“Toda a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país em que residia como resultado daqueles eventos, não pode ou, em razão daqueles temores, não quer regressar ao mesmo.”

A disseminação do novo coronavírus, desde o final de 2019, ameaça a todos, independentemente da nacionalidade, etnia, religião ou posicionamento político, porém, certamente afeta de forma mais intensa as populações marginalizadas, que não possuem acesso a sistemas médicos ou sanitários. Devido a perseguições – dentre elas política, religiosa, étnica, ou por orientação sexual –, a violência generalizada e até mesmo devido a catástrofes naturais, solicitantes de refúgio e refugiados foram forçados a deixar para trás sua moradia, emprego e entes queridos, e acabam enfrentando desafios ainda maiores ao recomeçar uma vida em um novo país.

Os movimentos migratórios trazem uma realidade muitas vezes imprevisível, uma vez que são marcados por expectativas e implicações, tanto para as pessoas que partem, quanto para as que ficam (DPU, 2019). Mais de 80% dos refugiados do mundo vivem em países em desenvolvimento, muitas vezes em países vizinhos do seu de origem. Isso significa que os sistemas de saúde e saneamento básico de muitos desses países que recebem refugiados são alguns dos mais fracos do mundo e já estão sobrecarregados, o que nos leva a um dos grandes dilemas referentes a tomada de decisões e designação de políticas migratórias pelos governos: o acesso de migrantes ao sistema público.

Os interesses desses migrantes e refugiados são propagados erroneamente, ao disseminar que rivalizam com os interesses dos próprios cidadãos do país que agora se encontram. Procurando os desafios e as oportunidades dessa presença multicultural e multifacetada nos Estados nacionais, será exemplificada a situação do Brasil, ao exaltar a importância da atuação desses indivíduos em setores cruciais e o combate a narrativa tóxica, que contamina a recepção da população local frente a reivindicação desses direitos básicos.

Segundo a Declaração dos Direitos Humanos, “todo ser humano tem direito a ser, em todos lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”. Esses direitos, então, são considerados inalienáveis e inerentes à condição humana, e acompanham os indivíduos em todo o seu processo migratório (OIM, 2019). Mas mesmo com dispositivos legais que afirmam os direitos dos migrantes e refugiados em sua jornada, questionamentos surgem em relação aos possíveis gastos sociais e a segurança pública.

A Constituição Brasileira de 1988 segue os parâmetros internacionalmente estabelecidos, defendendo a saúde como um direito de todos, instituído por meio da Lei n° 8.080/1990, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar disso, nos dias atuais ainda existe uma dificuldade de se reconhecer que pessoas na condição de refúgio têm esse direito, conforme preconizado na legislação, dificultando a inclusão dos mesmos no meio social e comunitário (SOARES e SOUZA, 2018).

No Brasil, mesmo com o atual boom de fluxos migratórios de haitianos e venezuelanos, a percentagem geral dos migrantes registrados em território nacional não chega a alcançar 1% da população total (OIM, 2020), e como tal, não interfere na qualidade do atendimento ao público, e, sim, serve como um aviso e uma conscientização para o desenvolvimento em prol de uma maior efetividade dos serviços essenciais. Para uma população que historicamente tem sido negligenciada por suas elites tomadoras de decisão, a crise migratória em vigência – apesar do Brasil não constituir um de seus epicentros, ou mesmo um dos grandes focos para a crise do novo vírus – pode ser encarada como uma oportunidade, visto que essas maiores demandas atraem a atenção tanto nacional quanto internacionalmente, abrindo espaço para um ambiente de confecção de políticas públicas, e que também serão aplicáveis aos próprios cidadãos.

Para a rejeição de políticas migratórias restritivas ou seletivas, que impedem o ingresso de determinadas pessoas em território nacional, o combate a ideologias identitárias se faz necessário, na medida em que muitas delas, acabam por apresentar migrantes e refugiados como uma ameaça não apenas ao acesso a serviços públicos, mas aos valores ocidentais de cultura e religião, especialmente em tempos como esses, em que migrantes e refugiados passam a ser vistos como um problema social; transmissores de doenças.

Além de dispositivos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e a Constituição da OMS – Organização Mundial da Saúde – de 1948, que asseguram o direito igualitário à saúde, existem ainda imperativos legais, morais e humanitários de proteção aos refugiados, deslocados internos e migrantes em situações de conflitos armados, que admitem urgência ao acesso a saúde, como é o caso das Convenções de Genebra.

A Convenção de Refugiados de 1951 da ONU e seu Protocolo de 1967 proíbem as nações ratificadoras de retornar à força refugiados para seus países de origem, onde podem enfrentar ameaças a suas vidas. Esse princípio, conhecido como não repulsão, é válido mesmo em meio ao surto de COVID-19: os refugiados não devem ser rejeitados com base em medos reais ou percebidos da transmissão de Coronavírus, principalmente porque os vírus não respeitam as fronteiras nacionais. Quando os países não conseguem proteger os refugiados das ameaças de doenças infecciosas, toda a sociedade assume o risco que se segue.

É através desse falso link, geralmente relacionado entre o vírus e a migração “ilegal”, que acabam estigmatizando os refugiados, associando-os com um maior risco de contrair doenças. O nacionalismo, o isolacionismo e a xenofobia – forçam que continuem marginalizando-os e dificultando seu acesso aos serviços básicos de saúde – acabam por si só tornando impossível o processo de mitigação da disseminação do vírus (IHU, 2018).

Várias são as razões pelas quais muitos países ainda não abordaram às necessidades de refugiados em seus planejamentos pandêmicos de rotina. Em alguns casos, os países declararam explicitamente que são incapazes ou não desejam oferecer aos refugiados os mesmos direitos e acesso aos serviços de saúde que os oferecidos aos seus cidadãos, citando ameaças percebidas à soberania do Estado. Mas em muitos outros, a própria análise e percepção das necessidades dos refugiados no planejamento pandêmico apresenta um desafio aos tomadores de decisão.

Barreiras legais e administrativas geralmente impedem os refugiados de acessar serviços de saúde em alguns países anfitriões. Em Estados assolados por conflitos, os governos nacionais podem não manter controle político total sobre determinadas regiões, o que pode criar lacunas na cobertura de saúde entre os residentes que ficam fora de sua jurisdição. Além disso, conflitos armados geralmente resultam em fuga de profissionais de medicina – um êxodo dos profissionais de saúde pública que, em uma outra situação, formariam a espinha dorsal de uma forte resposta pandêmica (ICRC, 2020).

O tamanho e a mobilidade das populações refugiadas em alguns locais dificultam o processo das autoridades de saúde locais em rastrear pessoas em risco de infecção e garantir que suprimentos médicos suficientes estejam disponíveis. Surtos passados ​​– desde Ebola na República Democrática do Congo até a Cólera no Haiti –, mostraram que esses desafios, acabam por limitar o acesso aos serviços de saúde, agravando os impactos da doença para os refugiados (ICRC, 2020).

Diariamente, homens, mulheres e uma grande quantidade de crianças – integrantes do grupo de risco – continuam chegando nos campos, assentamentos e abrigos para escapar da escalada de violência de diversas partes do mundo. A superlotação desses espaços representa um desafio adicional na luta contra a COVID-19, uma vez que o distanciamento social é uma das formas mais eficazes de conter a doença, e nesses espaços confinados, a doença pode se espalhar rapidamente (ACNUR, 2020).

Mesmo sem uma pandemia, existe para os refugiados, que enfrentam situações de pobreza extrema, uma enorme barreira separando-os de serviços de prevenção, como a ausência de instalações sanitárias e do acesso à água limpa e sabão nos assentamentos.

Além do mais, o contágio se dá não apenas devido a fraca fiscalização ou a respostas inadequadas dos sistemas de saúde, mas também devido ao ceticismo das populações e de seus governadores quanto a seriedade e rapidez do contágio do vírus. Conter fake news e manter as populações desses países – afetados ou não por conflitos – de modo a enfatizar uma prevenção e tentar retardar esse surto é uma das ações mais importantes que podemos tomar no momento.

Desse modo, a esperança de acabar com a propagação do COVID-19 ainda reside na contenção, uma vez que os surtos presenciados em países como a China, Itália e os Estados Unidos, pressionaram de forma extraordinária seus serviços de saúde, e os frágeis sistemas de países periféricos certamente não se sairiam melhor da situação (ACNUR, 2020). É importante destacar, porém, que essas medidas de contenção, como o fechamento de fronteiras e restrição de movimento, não devem destituir o direito desses indivíduos de pedir asilo ou de reunir-se com seus familiares, optando assim, pela adoção de procedimentos preventivos por parte dos Estados, como a quarentena estipulada desses indivíduos.

Junto com a pandemia vem um importante aprendizado: estamos todos conectados, não importa onde. O vírus não conhece categorias nem fronteiras, e a todas as pessoas, especialmente os mais vulneráveis: a população mais pobre, idosos, inclusive refugiados, solicitantes de refúgio e apátridas, possuem direito e necessitam do acesso ao sistema de saúde. Para alcançar os objetivos da Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), Sem Deixar Ninguém para Trás, é imperativo que a saúde de refugiados seja abordada de forma adequada, sendo tratada como interesse de todos.

ACNUR. Dados Sobre Refúgio. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/perguntas-e-respostas/#refugiado. Acesso em: 2 abr. 2020.

AL JAZEERA. Time is Running Out to Protect Refugees from a Coronavirus Crisis. Disponível em:https://www.aljazeera.com/indepth/opinion/time-running-protect-refugees-coronavirus-crisis-200330063002696.html. Acesso em: 2 abr. 2020.

ICRC. COVID-19: Urgent action needed to counter major threat to life in conflict zones. Disponível em: https://www.icrc.org/en/document/covid-19-urgent-action-needed-counter-major-threat-life-conflict-zones. Acesso em: 2 abr. 2020.

IHU. Xenofobia, Racismo e Nacionalismo Populista no contexto das Migrações Globais e Refugiados. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/582910-xenofobia-racismo-e-nacionalismo-populista-no-contexto-das-migracoes-globais-e-refugiados. Acesso em: 2 abr. 2020.

INTER-AGENCY STANDING COMMITTEE. Interim Guidance SCALING-UP COVID-19 OUTBREAK READINESS AND RESPONSE OPERATIONS IN HUMANITARIAN SITUATIONS . Disponível em: https://interagencystandingcommittee.org/system/files/2020-03/IASC%20Interim%20Guidance%20on%20COVID-19%20for%20Outbreak%20Readiness%20and%20Response%20Operations%20-%20Camps%20and%20Camp-like%20Settings.pdf. Acesso em: 2 abr. 2020.

INTERNATIONAL CRISIS GROUP. The Gaza Strip and COVID-19: Preparing for the Worst. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/middle-east-north-africa/eastern-mediterranean/israelpalestine/b75-gaza-strip-and-covid-19-preparing-worst. Acesso em: 2 abr. 2020.

INTERNATIONAL CRISIS GROUP. COVID-19 and Conflict: Seven Trends to Watch. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/global/sb4-covid-19-and-conflict-seven-trends-watch. Acesso em: 2 abr. 2020.

OHCHR. The Principle of Non-Refoulement Under International Human Rights Law. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Migration/GlobalCompactMigration/ThePrincipleNon-RefoulementUnderInternationalHumanRightsLaw.pdf. Acesso em: 2 abr. 2020.

SOARES, Karine GIULIANO; SOUZA, F. B. D. O Refúgio e o Acesso às Políticas Públicas de Saúde no Brasil: subtítulo do artigo. Trayectorias Humanas Trascontinentales, MS, dez./2018. Disponível em: https://www.unilim.fr/trahs/1234. Acesso em: 2 abr. 2020.

Graduanda de Relações Internacionais pelo Centro Universitário IBMR e Pesquisadora do NUPREM, na linha de Segurança Internacional, com foco específico em Operações de Missões de Paz. Atua como estagiária na Delegacia de Imigrações (DELEMIG) da Polícia Federal, realizando o registro de imigrantes e refugiados.

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